Um momento de grande suspense!

Na primeira consulta com o médico assistente, como aliás em todas, o exame do bebé deverá ser completo para não deixar escapar nada de anómalo. É uma consulta que exige grande disponibilade e tempo por parte dos pais e dos profissionais.

Durante muitos anos pensou-se que os recém-nascidos eram seres “amorfos, abúlicos e inertes”, incapazes de revelarem um arzinho da sua graça e totalmente dependentes do colo e do peito maternos. Felizmente, a ciência encarregou-se de demonstrar que as coisas não são bem assim e que um recém-nascido é capaz de ver, de ouvir, de perceber e de reconhecer os cheiros e os gostos, além da extrema sensibilidade ao tato. O recém-nascido humano é frágil e não apresenta o grau de maturidade que se observa nas outras espécies animais, os riscos são diferentes, os perigos também e a capacidade de gestão das situações uma mera consequência das condições em que vive. Esta vulnerabilidade humana tem, contudo, uma contrapartida na superioridade psicológica e intelectual. Todavia, é fundamental vigiar a saúde do bebé e detetar precosemente os problemas, a maioria dos quais são corrigíveis se tratados a tempo e horas. Como, em Portugal, os partos têm lugar em meio hospitalar, seja público ou privado, os recém-nascidos são observados na sala de partos, mal nascem, diariamente durante o internamento, e antes da alta da maternidade. Assim, na primeira consulta com o médico assistente, muitas das anomalias e problemas graves, se não mesmo a maioria, terão já sido identificados.

DISPONIBILIDADE E TEMPO

Os objetivos da observação de um bebé, na primeira consulta, são vários: ver o estado geral, a vitalidade e força muscular, realizar o exame neuro-comportamental, detetar eventuais anomalias congénitas, avaliar as funções dos diversos aparelhos (respiratório, gastrointestinal, etc.), além da evolução ponderal. Este artigo versa o exame físico do bebé, mas vale a pena referir, pela sua importância, que a história clínica é fundamental, pois permite saber pormenores acerca dos pais e da família, por exemplo no que toca à sua composição, apoios que os pais têm, eventuais doenças hereditárias e familiares, profissão dos pais, se são fumadores, se vivem perto de espaços onde se possa passear, etc. Depois conversa-se sobre a alimentação do bebé, higiene, segurança, sinais de alarme, posição de deitar, saídas à rua, suplementos vitamínicos, mimo e afeto, entre muitos outros tópicos. Esta consulta exige, disponibilidade e tempo. Os bebés perdem peso nos primeiros dias de vida, recuperando depois o peso de nascença, em geral, no final da primeira semana. A observação global do bebé permite ver o seu tónus, segurando o bebé pelo ventro, de barriga para baixo, e ver se pende, tipo “boneco de trapos”, ou se faz esforços para se empertigar e manter-se horizontal, sem se encurvar em demasia, ou a maneira como se acalma, nomeadamente quando se coloca na posição fetal e se fala com ele, sem stresse na voz. Na cabeça avaliam-se os ossos da cabeça e a fontanela ou “moleirinha”, uma zona que causa sempre alguma impressão aos pais, mas que “não se parte”. Na cabeça, e resultantes do parto (por exemplo quando há uso de ventosa), podem ver-se cefalohematomas, que são zonas salientes, moles, e que correspondem a bolsas de sangue, ou o chamado caput succedaneo, que é uma zona de inchaço, mais ampla, de líquidos, pelo efeito de sucção e vácuo do parto.

ANALISAR OLHOS, NARIZ E BOCA

Na face observam-se os olhos: a cor das conjuntivas (para ver se estão pouco rosadas, amareladas, etc.), a coloração da esclerótica (parte branca do olho, onde pode haver icterícia ou, em alguns bebés, também, uma hemorragia da esclerótica, (causada pelo esforço do parto), a permeabilidade dos vários componentes à luz (a reação da pupila “bolinha preta do olho”, à luz, entre outros). Geralmente o bebé tem poucas lágrimas nas duas ou três primeiras semanas, e é essa a razão porque são frequentes as conjuntivites, traduzidas pelo aparecimento de “remelas”. É normal, também, os bebés entortarem os olhos nas primeiras semanas após o nascimento, não sendo obrigatoriamente sinal de estrabismo. A “cor dos olhos”, ou seja, da íris, nem sempre corresponde à cor definitiva. O nariz é um orgão precioso, e se estiver obstruído os bebés ficam muito aflitos, com dificuldades em respirar. É essencial manter o nariz bem limpo, usando o soro fisiológico antes das mamadas, mas evitando o uso dos “aspiradores”, porque sugam células da parede nasal e isso vai levar a uma reação do nariz que é produzir mais secreções. Às vezes, na boca, notam-se pequenas manchas cor de pérola, pequenas, no céu-da-boca, o que é normal, bem como pequenos quistos brancos, que são também normais e desaparecem com o tempo. É muito comum, também, a existência de um “freio da língua curto” que deverá ser avaliado pelo cirurgião pediatra. À volta do nariz e boca podem existir pequenos pontos brancos, muito pequeninos (chamados “mília”), que não necessitam de nenhum cuidado e que persistem por semanas. Ao fim de alguns dias, também é normal a pele da face ficar muito encarnada, com borbulhinhas, que são reações normais de um orgão que esteve sempre protegido da poluição, do ar, das mudanças de temperatura, etc.

A IMPORTÂNCIA DO TÓRAX E ABDÓMEN

A observação do tórax inclui uma inspeção-geral, para detetar eventuais deformidades, lesões, sinais de dificuldade respiratória, etc. A ascultação do coração e do aparelho respiratório é essencial, para analisar os ritmos, a circulação do ar e do sangue e a eventual presença de sopros cardíacos. Pode haver uma tumefação de um ou de ambas as glândulas mamárias, nos rapazes e nas raparigas, por influência das hormonas maternas em circulação, mas não se deve espremer nem tocar, para evitar infeções (mastites). A inspeção do abdomén pode mostrar aspetos diferentes do normal, na forma, ou lesões visíveis (por exemplo, se o cordão umbilical caiu), se está a cicatrizar bem, se há hernias umbilicais ou outras, um pouco acima, centrais, chamadas “hérnias de linha branca”. A palpação abdominal pode revelar, logo à partida, uma barriga dura, provavelmente cheia de ar, a que o toque e a percussão completam mostrando um “som de tambor”, tão comum. Avaliam-se também eventuais aumentos de tamanho dos órgãos intra-abdominais – fígado, rins, baço -, ou a existência de massas. Podem existir hérnias inguinais que têm que ser avaliadas por um cirurgião. Os médicos palpam também as virilhas para avaliarem os pulsos femorais, ou seja, para ver se o sangue circula bem para as extremidades inferiores. A anca deve ser sempre objeto de avaliação, para detetar uma situação comum – a instabilidade ou displasia da anca, que, em alguns casos, pode ser mesmo uma luxação congénita que tem de ser diagnosticada e tratada precocemente.

NÃO ESQUECER OS GENITAIS

A observação dos genitais da criança é um passo obrigatório. Nos rapazes, há que ver se os testículos já se encontram nas bolsas, o que pode vir a acontecer apenas até ao final do primeiro ano de vida, sem que isso represente doença. O pénis encontra-se geralmente apertado nos recém-nascidos, e esta “fimose” fisiológica deve ser vigiada, mas não se deve manipular com força, nem puxar. Nas raparigas, há que ver os órgãos genitais normais – os pequenos lábios podem estar, frequentemente colados. Em alguns bebés do sexo feminino pode haver uma pequena saída de muco ou de sangue vaginal, que não representa doença, mas sim um efeito das hormonas maternas que estão em circulação. O exame do ânus pode mostrar fístulas. As costas têm de ser sempre bem examinadas, para ver a coluna e eventuais defeitos, a existência possível de fossetas ou fístulas na região sagrada (um pouco acima do ânus) e pesquisar alguns reflexos. Devem também observar-se os braços e as pernas para ver a existência de deformidades, incluindo nas mãos e pés (número de dedos, posicionamento e alinhamento, unhas, pregas palmares, etc.). A pesquisa dos reflexos plantares é também útil. O exame geral da pele é muito importante: mostra a cor e a hidratação (o bebé está muitas vezes ainda coberto de um verniz gorduroso, amarelado, e pode ter uma penugem que subsiste por algumas semanas, sobretudo na parte de cima das costas). É muito comum, em Portugal, a existência de umas manchas na parte inferior das costas e nádegas, azuladas (como se se tratasse de uma nódoa negra), e a que se chama “mancha mangólica” mas em nada tem haver com o chamado mongolismo. Do mesmo modo, podem existir angiomas, que são formações com diversos tamanhos e em vários locais, desde a nuca (muito comum) até qualquer dos membros ou abdómen, ou mesmo na face. São encarniçados ou arroxeados, e às vezes salientes. Geralmente aumentam um pouco de tamanho até aos 9-12 meses e começam a regredir. Podem também exisitir diversas manchinhas “café com leite” (que são normais se não ultrapassarem as seis e forem pequenas) e “marcas de nascença”, de vário tons, em muito semelhantes a marcas que existem noutros elementos da família. Os recém-nascidos estão habitualmente muito encarnados, pois têm muita hemoglobina por terem vivido nove meses num ambiente com relativamente pouco oxigénio. Ao nascerem, essa hemoglobina “a mais” que está dentro dos glóbulos vermelhos, vai diminuir, através de um processo de destruição no baço, e por isso pode causar icterícia, o que dá uma coloração amarelada à pele (a chamada icterícia fisiológica), que pode prolongar-se (sem qualquer problema) se o bebé está a ser amamentado. Assim que nasce, o bebé está equipado com um certo número de reflexos, como a sucção, indispensável para a sobrevivênca. Ao acariciar-se a face de um bebé, ele volta a cabeça para a mão que o tocou, procurando sugar – é o chamado “reflexo dos pontos cardeais”. É por isso que, às vezes, quando as mães acariciam a face dos bebés durante a mamada, eles parecem afastar-se do peito.

REFLEXOS QUE ENTUSIASMAM MÃES E PAIS

Um reflexo que estusiasma as mães e pais na primeira consulta médica é o reflexo “da marcha automática”. Posta de pé a criança esboça passadas. Na posição de sentado, o recém-nascido é também capaz de ensaiar tentativas de segurar a cabeça em posicão vertical. É indiscutível que os bebés estão, ao nascer, “programados” para saberem sentar-se, andar, ver e até nadar. Outro reflexo muito conhecido é o da preensão. Basta tocar na planta do pé ou na palma da mão de um bebé para ele fehar automaticamente os dedos com força. Acariciando o lado contrário – o dorso do pé ou da mão – a criança abre os dedos. O reflexo do abraço, ou “de Moro”, é um reflexo de defesa, que por vezes assusta os pais. Dixando cair a cabeça para trás, o recém-nascido estende o pescoço, abre e feha os braços e pernas e agita-se.

ESTIMULAR O BEBÉ COM BRINCADEIRA

Para os pais, por outro lado, é extremamente recompensador e divertido descobrir as capaciades do seu filho, pelo que não devem ter medo de brincar com o seu bebé, falar com ele, estimulá-lo, demonstrar abertamente o seu amor. É fácil perceber os melhores momentos para desenvolver esta interação pais/filho: quando o bebé está bem acordado, sem fome, sem a fralda molhada, sem cólicas, sem frio, sem sono. É fácil perceber, também, quando o bebé está a ficar cansado – ele defede-se, deixando-se adormecer ou ficando irritado. É também fácil descobrir como o bebé se consola, quando irritado: falando com ele, pondo-lhe a mão na barriga, segurando-lhe as mãos e as pernas e impedindo os movimentos de agitação que o desorganizam, pegando-lhe ao colo, embalando-o… e cada bebé tem a sua maneira de ser e o seu leque de respostas aos diversos estímulos do mundo que veio encontrar. A descoberta do bebé é um desafio estimulante e agradável e ele sabe fazer muitas mais coisas do que simplesmente comer e dormir. É só uma questão de lhe dar as oportunidades para o demonstrar, apreciando o “hoje”, já que “amanhã” já o bebé será diferente, será outro…como nós o seremos também…

Artigo da Revista Nove Meses, nº 16, Janeiro 2017